domingo, 26 de setembro de 2010

longas brasileiros em 2010 (224)

Filmes brasileiros assistidos e revistos em 2010 no cinema, no DVD e na televisão.
(em 2009 - 315 filmes)

224 - Maria... Sempre Maria (1973), de Eduardo Llorente ***1/2

A narração de texto pífio no prológo desse Maria... Sempre Maria, que identifica a personagem como símbolo de toda mulher e da pureza inerente que há em todas, nem de longe serve como pista para o que se verá a seguir. Pois a partir do momento em que Rosana Martins chega na rodoviária da capital paulista com mala na mão e de trança, protagoniza primeiro flashback em que é expulsa da fazenda em que vive por ser filha bastarda, e aí corre no chão de terra lá e em paralelo no viaduto do chá aqui, dá-se a chave para o que o delírio se instale. Extasiada com a altura dos prédios e com as vitrines luminosas, rapidamente ela vai percorrer os classificados de emprego, em que sempre encontrará possíveis patrões bigodudos mais de olho em suas coxas que em qualquer outro atributo, cairá na viração das noites de concreto e neon da cidade, e encontrará Roberto Bolant e Sérgio Hingst pelo caminho. Com o primeiro ensaiará cacho mezzo romântico mezzo profissional, já com o segundo a possibilidade de redenção. Como uma Eva em exacerbado estado de espiação, Rosana vai encontrar em Hingst um Adão que fuma cigarros Mauá, esquenta mamadeira à noite na casa da matriz e faz promessas frágeis de amor à filial. Daí é como se entrasse na toca do coelho, enquanto ele fica do lado de fora bafejando no asfalto à procura de relva. Lançado comercialmente no extinto Cine Barão, em São Paulo, não há como não vir de assalto aos sentidos o que significou o mostrado nesses 100 minutos de filme para a platéia que passou a roleta no endereço da Barão de Itapetininga. Sim, porque essa produção dirigida pelo cineasta espanhol radicado no Brasil Eduardo Llorente deve ter sido tão desconcertante lá como continua ainda hoje passados quase quarenta anos de sua realização. Lá pelo conteúdo, que pode ter parecido sem pé nem cabeça. Aqui, porque faz a gente pensar logo em como o cinema brasileiro dos anos 1970 explorou tantas possibilidades. É como se as portas abertas da percepcão do surrealismo encontrassem a cruz e a caldeirinha de Dreyer banhadas nas experiências cromáticas de Derek Jarman, só que fincadas na São Paulo da Boca do Luxo e do Lixo, das fachadas luminosas das boates La Ronde e Le Masque e do samba Batuque na Cozinha. E tudo isso registrado pela fotografia ousada de Ozualdo Candeias, que faz cama para o roteiro, também de Llorente, que quase elimina o id da personagem - certamente para decepção dos adeptos do cinema popular de carnes à mostra - e bota o super ego à toda no centro da ação. Com isso, e cada vez mais, o real vai para escanteio, e o sensorial toma conta da cena. Esse Maria... Sempre Maria tem ainda Mauro Mendonça no elenco, como aquele que apontará o dedo em riste para a platéia em consonância com o texto do prólogo. Só que essa sentença de julgamento moral entre vício e virtude fará pouquíssimo eco na retina, ao contrário de toda a ambiência das imagens delirantes construídas, e que parecem ter, felizmente e paradoxalmente, fugido ao controle de sua base moralizante. Surpreendente, diferente e desconcertante produção.

Cotações:
+ ruim
* fraco
** regular
*** bom
**** muito bom
***** ótimo

Nenhum comentário:

Postar um comentário